(Translation in Portuguese: Ivy Daure & Rosa Pinheiro de Souza)
Esta é a história de uma garrafa, uma simples garrafa.
Uma garrafa, no mar.
Ela poderia ser mensageira de um antigo naufrágio do qual ela nos revelaria o segredo. Mas ela é na verdade apenas um dejeto ordinário, plástico que pensamos, sem grande valor. No início da cadeia de um processo que a viu nascer, servir e também se decompor, ela seguiu a trajetória de nossos lixos, jogada de um conteiner à outro em companhia de outros deserdados. Até o dia em que o desvio de uma vida que a gente lhe prometera de mil anos (é esta a esperança de vida de um plástico !), ela foi aspirada pela força dos oceanos, jogada pelas ondas, a fim de acabar neste curioso lugar onde tantos outros fragmentos que trazem com eles histórias bastante comparáveis a acolheram sob um sol enganador. Aqui está ela hoje, que se deteriora no contato com o elemento marinho, contaminando pouco à pouco as águas e os ecossistemas. E ao mesmo tempo em que sua matéria se dilui no ataque das ondas e dos ventos, a garrafa se lembra…
Ela se vê de repente neste alojamento onde ela foi levada um dia, passando de mão em mão em uma fraternidade inesperada que a fez sentir uma rápida, mas incomparável vertigem. Ela estava tão orgulhosa, resultado do trabalho dos homens, pronta para ser consumida. Ela foi fabricada para isto ! Sim, a garrafa se lembra do seu nascimento em uma empresa, como se ela pudesse se orgulhar do desenvolvimento técnico que a oportuniza a assegurar o conforto e o bem estar dos seus futuros usuários, participando da grande aventura econômica da nossa época.
Claro em relação a isto, e ainda que ela não fosse especialista, ela ouviu falar da crise, do aquecimento climático, das ameaças ao meio ambiente, dos perigos causados à vida, ou ainda à saúde. Mas que tudo isso parecia longe, tão abstrato face a grande e bela máquina do nosso tempo da qual ela era uma das herdeiras ! Ela era o reflexo do nosso domínio de energia, particularmente fóssil ! Ela dava o devido sentido aos frutos da agricultura que ela tinha tido o privilégio de conter para fins alimentícios ?! Tão modesta ela era, tão efêmera tinha sido programada a sua utilização, a garrafa se lembra desta sociedade de consumo a qual ela tinha pertencido, determinando sua posição na ordem das coisas da qual ela imaginava a governança tão bem pensada, tanto quanto uma « garrafa » pode supor. Uma amiga, lhe contou até mesmo a historia de um rapaz que tinha dificuldades motoras, que tinha conseguido superar sua deficiência modelizando e depois construindo com seus colegas uma pinça que eles imprimiram em três dimensões a fim de lhe permitir abrir as garrafas como ela. Mágico !
« Garrafa », aqui está um nome ! Aqui está ela que se pergunta, como a gente diz esta palavra em outras línguas do mundo. A palavra é feminina ou masculina ? Neutra, talvez ? Algumas línguas, pensa ela neste instante, pela primeira vez, não devem conhecer esta palavra ou não a conheceram antes… Isto a perturba um pouco. Como elas preencheram esta ausência ? Ela toma consciência que sua designação deu-lhe não somente sentido e forma, mas participou da sua identidade… Teria ela um lugar no léxico do nosso tempo ? Evidentemente ! Pensa ela enchendo o peito. Não é ela em toda sua universalidade uma magnífica referência contemporânea, encarnando, o avanço, o progresso ?
É estranho pois enquanto falamos de progresso, ela pensa ter visto um drone sobrevoar o espaço onde ela se encontra… Um drone, neste lugar abandonado ? Uma ilusão sem dúvida. A garrafa, pensa que ela deve ter sido vítima de alucinações e retoma de maneira mais forte e ininterrupta suas reflexões.
Se ela pudesse escrever diários, ela contaria incansavelmente os mundos estrangeiros que ela atravessou na terra e no mar, além dos rios, montanhas, florestas e cidades. Muitos ficariam surpresos, pois a garrafa atravessous várias fronteiras, vários países… constatando grandes níveis de desigualdade, de riqueza, de pobreza, mas também a mundialização dos intercâmbios e das culturas nas quais os lixos não são em caso algum indiferentes. Quem sabe, talvez ela pudesse até ajudar a analisar nossas visões do mundo, as garrafas plásticas tendo encontrado tantas utilizações criativas, suscitando ou refletindo o inesgotável talento dos seus usuários !
Ha muito tempo atrás, quando seu modelo foi desenhado pelo engenheiro, na beleza de suas formas, o contorno de suas curvas longelíneas, a garrafa teria quase jurado poder conquistar o mundo. O futuro lhe pertencia. Nunhum risco lhe vinha a mente, e toda forma de catástrofe parecia tão distante, tão improvável… Contrariamente, ela sabe hoje o quanto ela é frágil, condenada a se desintegrar no meio aquático pouco propício a se parabenizar por isto… Então a garrafa começa a duvidar. Ela teria vivido diferentemente se ela tivesse sabido disto antes ? Aqui está ela, pensando neste planeta frágil como se ela pressentisse o perigo crescente que pesa sobre todos os objetos como ela, bem como todas as espécies e até a humanidade. Ela sente nela mesma, em cada uma de suas moléculas que se desfazem, que ela é o resultado de uma história, de uma evolução de seus inelutáveis questionamentos. Ela que é apenas, uma garrafa no mar, se pergunta então no que poderia, muito bem, ser o seu último suspiro, o que lhe falta realizar e conseguir. Ela cumpriu o seu contrato sem esperança de renová-lo! Quem pode imaginar esta estranha situação ?
Sim, a garrafa se sente desesperadamente só. Ela gostaria de comunicar ao mundo o que ela sente, conscientizar ao « nós » sensível aos problemas contemporâneos e a urgencia de sua resolução, mas nada menos complexo para uma garrafa que esta morrendo em um continante que não existe ainda. Certamente as gerações futuras não ouvirão jamais falar dela…
Ela daria tudo para poder mudar isto, para ajudar a compreender que é necessario talvez aprender a renunciar a algumas coisas, repensar nossos modos de relação com os objetos, com os seres, com o mundo. Mas observando ao seu redor ela percebe que tudo isto é apenas uma utopia. Utopia de uma garrafa- plástica- no mar, que não saberia desenvolver nenhuma responsabilidade, nem suscitar a menor inteligência. O jogo está lançado, as decisões estão tomadas…Ela está qualificada para confirmar isto ! Então a garrafa pensou consigo mesma que se ela tivesse que refazer… Logo ela se interrompe porque ela sabe que não se pode voltar atrás. Ela pensa então que se ela tivesse que refazer, seria necessario seguramente antecipar o conjunto desta cadeia, à luz de um melhor compartilhamento…
Subitamente a garrafa se interrompe… Contra toda expectativa, uma mão a recolhe… Ela não consegue acreditar, entretanto ela não tem nenhuma dúvida, ela sente novamente o calor comunicativo que a fez amar este mundo. De maneira acelerada, ela revê passar o filme de sua vida : os desenhos do engenheiro, a sua elaboração, a fábrica, depois a usina de embalagens, a prateleira da loja onde ela foi vendida, as fortes alegrias do apartamento, a cadeia de dejetos, até todas as etapas do caminho insensato que fez com que um dia, ela conhecesse o vasto oceano ! E ela ouve em seguida uma voz que ela não tinha ouvido há muito tempo : « Olha de onde que ela vem, esta daí !? » « Incrivel ! Um bom exemplo, pegue-a. »